Sempre achei que eu tivesse uma memória boa. Depois do nosso último (re)encontro, acho o oposto. Eu me lembrava só do nosso primeiro beijo e alguns detalhes, épicos, que circundaram isso. O escarcéu que foi você, o cara-mais-bonito-da-escola, querendo ficar comigo, a-garota-mais-zuada-da-escola. A galera rindo achando que você estava zuando com a minha cara. Cenas dramáticas e hilárias da minha versão de 13 anos rasgando uma suposta carta que você tinha me enviado. Seu amigo tentando me convencer que era verdade. Eu tentando te convencer que eu não importava. Você era tão distante da minha realidade que se quer havia te notado muito bem. O cara bonito, popular e descolado do terceiro colegial. Meu deus. Cenas de você encostado com a perna na parede e as mãos no bolso. Seu sorriso tímido, olhos bonitos, olhar marcante. Soava como um esboço, sabe. Algo sem uma forma nítida porque eu, não ousaria encarar. Abaixava a cabeça e continuava rumo à biblioteca ou sala de computação, onde a galera estranha se isolava.
O que veio depois do primeiro e desastroso beijo, eu me lembrava vagamente. Nós dois inseridos na cena underground de Araraquara. Você com suas bandas, estudando fora. Por alguma ironia do destino, a gente se encontrando por ai. Eu beijando um cara em Campinas. Você com ciúmes. Cenas vagas de uma tentativa de encontro romântico. Você me explana a memória dizendo que eu te ignorei e estava com “outro”. Quantos anos isso faz? Muitos. Como você se lembra disso?! Meu deus! Enquanto você me conta, eu viro um copo de plástico com catuaba que você gentilmente me trouxe. Você então explica que tínhamos marcados de ir no “Baile da Arara Vermelha” em um clube elitizado de Araraquara. Eu não fui e você, coincidentemente, encontrou-me em uma festa de república, meia bêbada, com um cara querendo ficar comigo, “com a mão na minha coxa”. Risos. Segundo você e a sua memória, eu disse que não fui no baile porque só ia dar playboy lá. Quando ouço essa parte da história, começo a rir tanto que cuspo a catuaba. Que divertido isso! Que divertido a gente. Ou o que fomos. Ou tentamos ser. Assim, aos pedaços.
Naquela atual noite, a gente se reencontrou muito ao acaso. Eu estava tocando em uma praça de Araraquara onde você costuma frequentar, mas não frequentava há tempos devido à uma namorada possessiva. Naquele dia, vocês terminaram o namoro. E você foi lá sozinho e me encontrou no palco tocando algum rock clichê e triste. Lá você fica com duas amigas minhas assistindo o meu show todo. Uma cena fofa: minha mãe falando para você e a Bela fazerem companhia para a Raquel que está sozinha. Você imediatamente, sem hesitar, vai buscar ela. Eu dei um sorriso forte quando a minha mãe me contou isso. Não esperando outra coisa vindo de você.
Acabo o show, sento no palco com vocês e conto para as meninas que você foi o primeiro cara que eu beijei, e que me orgulhava muito de toda a história “cinematográfica” que isso foi. Você fica todo tímido. Eu te elogio bastante, não porque quero algo mas porque não tem como não te elogiar. Você tratando todo mundo tão bem, sempre gentil, mesmo com essa personalidade forte e pavio curto. Você então diz que nunca foi tão elogiado em toda a sua vida. Você nem vai se lembrar! – digo – já tá bem bêbado! Eu me lembro de tudo – você diz. E como se lembra.
Você está a pé. Já passa da meia noite. Eu viajo de volta para a Europa no próximo dia. Ofereço uma carona. Você reluta um pouco mas aceita, todo envergonhado por estar embriagado. Frases do tipo: pareço um menino do seu lado! Surgem. É ainda cinematográfico. A gente. Penso.
Paro na frente da sua casa. Tem um speaker no carro tocando músicas do seu celular. Você coloca “All I Need” do Radiohead. Uma das minhas músicas preferidas. Bem nessa hora, você começa a me agradecer pelo meu show, dizendo que andou um bom tempo depressivo e aquela noite foi muito especial para você, que a minha “egrégora” no palco estava incrível. Eu choro. Ridiculamente, lágrimas me encharcam o rosto. Mas você está muito bêbado para notar sutilezas. Por que você tá chorando? – você pergunta – Nada. Só tô emocionada.
O que você não sabia, era que eu tinha chamado um cara para ir no show. A gente teve um envolvimento no meu tempo no Brasil. Não deu muito certo. Ele não quis ir e tampouco quis me ver antes de eu ir embora. Não consegui não ficar triste. Achando-me pouca coisa, sabe, como a gente costuma se achar mediante a esses pequenos grandes abandonos. Então aquele momento, tocando no bar que passei a minha juventude em Araraquara, com a minha família e amigos ali vibrando por mim, e você no meio disso. Você, o primero beijo, um lembrança terna de um tempo onde a vida era outra. E ver você -ainda- ali, nessa outra vida, sentado no palco, dentro do meu carro, dirigindo-me palavras tão doces; é uma “quebra” sabe. Algo inesperado e macio no meio de um cotidiano que parece ser feito de farpas. Mais uma vez, você me surge como algo improvável e bonito.
A gente começa a falar sobre muita coisa no carro. Seu relacionamento. Trabalho. Sua família. Então você para, me olha e diz: muitos assuntos aqui. Eu rio. O que? – você pergunta. – Nada. Só a sua maneira de perceber as coisas.
Você sabe, sempre fomos pedaços. No outro dia você me manda uma mensagem agradecendo. Eu então te digo que você é uma pessoa muito foda e para não se acabar em cigarro e álcool. Você para então de falar comigo, aparentemente incomodado. Assim nesse contexto meio dramático, meio fantástico e um tanto cinematográfico que pertencemos.
Ainda penso, vez ou outra, na cena do carro. E me pego sorrindo