Resgate


Dia das crianças sempre me pareceu uma data surrealmente comercial como todas as outras ditas datas comemorativas que atrelam celebração com consumo. Aí lembro da minha criança rebelde que queria dar cartão de natal feito a mão porque achava que valia bem mais. Minha irmã, tão pequena, chorava quando eu a tirava no amigo secreto pelo simples cartão feito a mão. Anos mais tarde essa mesma irmã se revoltaria com as mesmas datas, mas continuaria me chamando de excêntrica. É incrível como a gente já nasce assim meio que formatado. E talvez o resto da vida seja um aprender a ser quem éramos e tivemos que deixar de ser.

Dias das crianças me lembra disso; de mim, deles, da gente. A minha família, esse centro, abismo, que parece carregar tudo. Nessas teorias loucas de tempo espaço, encontro a minha menina ainda em sua despedaçada infância que era tudo menos inocente ou leve. Mas ela sabia, como sabia, que aquilo seria, e era, a sua fortaleza. E nessa mesma trinca de espaço/tempo, onde talvez tudo coexista; somos uma. A criança de cinco anos gritando: “sou uma fada não pertenço a esse mundo”, e insistindo para o pai a levar em uma floresta para acender velas, ou para vó costurar um vestido de cetim com tules esvoaçantes. A menina trancada na sala da casa, movendo todos os móveis de lugar, deixando a mãe louca, dançando e cantando para uma plateia invisível. A criança que chocava todos por ser “altruísta” demais para a idade. A menina no alto de uma amoreira no fundo da escola fugindo do recreio e daquela sociedade em miniatura hostil. Ah, como tudo muda e nada muda.

Quando olho para um adulto naquele esparso momento onde uma fresta de vulnerabilidade é exposta; vejo uma criança em seu olhar. Aquilo me comove em um sentido de sentir dó. Como se houvesse um bichinho indefeso lutando ali dentro daquela muralha frágil. Aí acho que dia das crianças é dia de de todos nós. Uma tarefa de autoconhecimento e reconhecimento. Um resgate.

Estudo sobre Tela

Haveria, talvez, uma faca e meia dúzia de superfícies.
Porque o objetivo da faca é sempre cortar Independentemente do seu tipo.
Já as superfícies seriam diferentes coisas em diferentes momentos.
Mas esquecem.

Há a superfície dura, mas tão dura
Que esfola a faca quando apunhalada.
Não que ela seja inatingível
A trinca se abre, como se abre
Mas ela trinca de volta
Na mesma intensidade.

Há a superfície mole mas tão mole
Que a a faca afunda.
Mas então, o corte é dentro e não fora?
Quando a faca com tudo se afoga
Atingindo profundos rochedos.

Há também, entre outras, a superfície esponjosa que segura a faca a cada golpeada em uma tentativa confusa de interromper e arrebater.

Há uma faca e diversas superfícies.
Porém a faca sempre sabe o que fazer
Enquanto as superfícies tendem a esquecer
Através da tentativa cíclica de defesa ou ataque.
Não que sejam culpadas ou alienadas
Coitadas.
É que depois de algum tempo fica difícil distinguir o todo
Quando tudo se torna pedaço.

Vinho

Você me perde às dez para a meia noite
Entre uma taça de vinho e outra
Quando não consegue mais sustentar
As verdades que escolheu
Só para me impressionar.
Você me perde quando, já cansado
Ou relaxado
Abre as mãos, deixando escapar
Aquelas coisas guardadas
Engasgadas
Como a forma que você fala
De outras garotas na minha frente
Porque eu sei que é dessa mesma forma
Que você irá falar de mim
Quando eu não estiver presente
Quando eu não te servir mais.
Após algumas madrugadas
E várias camadas no chão
A gente briga
Você, enfurecido, diz
Que não está atacando a mim
Mas sim aos outro
Porque eles querem nos separar
Eu, triste, digo
Antes fosse a mim
Porque a maneira que você fala
De quem não te serve
Diz tanto
Sobre você
E todas aquelas coisas
Dentro da sua mão
Que você não mostra
Mas pouco a pouco
Solta
Quando os músculos se afrouxam
Entre uma taça de vinho e outra
Entre dias cansados do cotidiano
Você solta
Você me solta
Porque eu não te sirvo mais
Porque eu não concordo
Porque eu vejo
Além do que você quer mostrar
Ou forjar?
Eu faço força para acreditar
Que são partes humanas essas
Sujando o chão
Escorrendo pelas suas mãos
E eu te dou um milhão de chances
E você desiste de mim em cada uma delas
Você me perde
No meio daquela gaveta de coisas inúteis
E gastas
Que não te servem mais.

O primeiro beijo, Radiohead, Muitos assuntos

Sempre achei que eu tivesse uma memória boa. Depois do nosso último (re)encontro, acho o oposto. Eu me lembrava só do nosso primeiro beijo e alguns detalhes, épicos, que circundaram isso. O escarcéu que foi você, o cara-mais-bonito-da-escola, querendo ficar comigo, a-garota-mais-zuada-da-escola. A galera rindo achando que você estava zuando com a minha cara. Cenas dramáticas e hilárias da minha versão de 13 anos rasgando uma suposta carta que você tinha me enviado. Seu amigo tentando me convencer que era verdade. Eu tentando te convencer que eu não importava. Você era tão distante da minha realidade que se quer havia te notado muito bem. O cara bonito, popular e descolado do terceiro colegial. Meu deus. Cenas de você encostado com a perna na parede e as mãos no bolso. Seu sorriso tímido, olhos bonitos, olhar marcante. Soava como um esboço, sabe. Algo sem uma forma nítida porque eu, não ousaria encarar. Abaixava a cabeça e continuava rumo à biblioteca ou sala de computação, onde a galera estranha se isolava.

O que veio depois do primeiro e desastroso beijo, eu me lembrava vagamente. Nós dois inseridos na cena underground de Araraquara. Você com suas bandas, estudando fora. Por alguma ironia do destino, a gente se encontrando por ai. Eu beijando um cara em Campinas. Você com ciúmes. Cenas vagas de uma tentativa de encontro romântico. Você me explana a memória dizendo que eu te ignorei e estava com “outro”. Quantos anos isso faz? Muitos. Como você se lembra disso?! Meu deus! Enquanto você me conta, eu viro um copo de plástico com catuaba que você gentilmente me trouxe. Você então explica que tínhamos marcados de ir no “Baile da Arara Vermelha” em um clube elitizado de Araraquara. Eu não fui e você, coincidentemente, encontrou-me em uma festa de república, meia bêbada, com um cara querendo ficar comigo, “com a mão na minha coxa”. Risos. Segundo você e a sua memória, eu disse que não fui no baile porque só ia dar playboy lá. Quando ouço essa parte da história, começo a rir tanto que cuspo a catuaba. Que divertido isso! Que divertido a gente. Ou o que fomos. Ou tentamos ser. Assim, aos pedaços.

Naquela atual noite, a gente se reencontrou muito ao acaso. Eu estava tocando em uma praça de Araraquara onde você costuma frequentar, mas não frequentava há tempos devido à uma namorada possessiva. Naquele dia, vocês terminaram o namoro. E você foi lá sozinho e me encontrou no palco tocando algum rock clichê e triste. Lá você fica com duas amigas minhas assistindo o meu show todo. Uma cena fofa: minha mãe falando para você e a Bela fazerem companhia para a Raquel que está sozinha. Você imediatamente, sem hesitar, vai buscar ela. Eu dei um sorriso forte quando a minha mãe me contou isso. Não esperando outra coisa vindo de você.

Acabo o show, sento no palco com vocês e conto para as meninas que você foi o primeiro cara que eu beijei, e que me orgulhava muito de toda a história “cinematográfica” que isso foi. Você fica todo tímido. Eu te elogio bastante, não porque quero algo mas porque não tem como não te elogiar. Você tratando todo mundo tão bem, sempre gentil, mesmo com essa personalidade forte e pavio curto. Você então diz que nunca foi tão elogiado em toda a sua vida. Você nem vai se lembrar! – digo – já tá bem bêbado! Eu me lembro de tudo – você diz. E como se lembra.

Você está a pé. Já passa da meia noite. Eu viajo de volta para a Europa no próximo dia. Ofereço uma carona. Você reluta um pouco mas aceita, todo envergonhado por estar embriagado. Frases do tipo: pareço um menino do seu lado! Surgem. É ainda cinematográfico. A gente. Penso.

Paro na frente da sua casa. Tem um speaker no carro tocando músicas do seu celular. Você coloca “All I Need” do Radiohead. Uma das minhas músicas preferidas. Bem nessa hora, você começa a me agradecer pelo meu show, dizendo que andou um bom tempo depressivo e aquela noite foi muito especial para você, que a minha “egrégora” no palco estava incrível. Eu choro. Ridiculamente, lágrimas me encharcam o rosto. Mas você está muito bêbado para notar sutilezas. Por que você tá chorando? – você pergunta – Nada. Só tô emocionada.

O que você não sabia, era que eu tinha chamado um cara para ir no show. A gente teve um envolvimento no meu tempo no Brasil. Não deu muito certo. Ele não quis ir e tampouco quis me ver antes de eu ir embora. Não consegui não ficar triste. Achando-me pouca coisa, sabe, como a gente costuma se achar mediante a esses pequenos grandes abandonos. Então aquele momento, tocando no bar que passei a minha juventude em Araraquara, com a minha família e amigos ali vibrando por mim, e você no meio disso. Você, o primero beijo, um lembrança terna de um tempo onde a vida era outra. E ver você -ainda- ali, nessa outra vida, sentado no palco, dentro do meu carro, dirigindo-me palavras tão doces; é uma “quebra” sabe. Algo inesperado e macio no meio de um cotidiano que parece ser feito de farpas. Mais uma vez, você me surge como algo improvável e bonito.

A gente começa a falar sobre muita coisa no carro. Seu relacionamento. Trabalho. Sua família. Então você para, me olha e diz: muitos assuntos aqui. Eu rio. O que? – você pergunta. – Nada. Só a sua maneira de perceber as coisas.

Você sabe, sempre fomos pedaços. No outro dia você me manda uma mensagem agradecendo. Eu então te digo que você é uma pessoa muito foda e para não se acabar em cigarro e álcool. Você para então de falar comigo, aparentemente incomodado. Assim nesse contexto meio dramático, meio fantástico e um tanto cinematográfico que pertencemos.

Ainda penso, vez ou outra, na cena do carro. E me pego sorrindo

5 Anos

“Tidal waves don’t beg forgiveness / crashed and on their way”.

Em Dezembro eu completo cinco anos vivendo no exterior. Do Canadá à Escócia à França, com uma brecha de três meses tocando nas ruas da Espanha e de Portugal, aqui estou. É difícil processar tudo isso. Ou impossível. Nada foi muito planejado. Tudo foi muito almejado. Parafraseando Lispector:” minha coragem é de um sonâmbulo que só vai.” Em cada uma dessas mudanças, poucas certezas e muitos sonhos. Já aprendi que a vida é tentativa. E muita pouca coisas é irreversível. Já aprendi que vai ser uma mescla de bom e ruim. Quase que equivalente. Já aprendi que tenho esse dom intrínseco de contar anedotas com a minhas próprias histórias, explicando, resignificando, honrando meus acontecimentos e desacontecimentos. Já aprendi a confiar e a me resignar, compreendendo que quase nada entendo ou controlo. E está tudo bem. Já aprendi que o lugar externo é só um lugar. A minha manutenção interna é o meu bem-estar. Já aprendi o que funciona comigo. Como funciono? Quietinha na minha casa entre velas, incenso, cristais e música. Não gosto muito de ver muita gente. Mas gosto, gosto, de me conectar profundamente com uma pessoa de cada vez. Gosto do diferente. Seja clima, língua, paisagens. Quero ir para o Ártico e para o deserto. Quero continuar querendo coisas. Não com a ânsia de conseguir mas com a motivação de procurar, fazendo disso movimento. Quero cada vez mais ser melhor do que fui ontem. Sofrer melhor, amar melhor, viver melhor. Sem a frustação da busca de ideais inatingíveis. Mas com a humildade de me dizer que pouco sou, pouco sei, e está tudo bem. Quero aprender, quero saber, quero crescer. No meu tempo.

A minha primeira mudança, para Montreal, surgiu do plano de voluntariar na Grécia com refugiados. A vida costuma ser assim né, esse ligar misterioso de pontos. Esse tatear. Entre a ida para Grécia e a partida para Montreal, muita coisa aconteceu. E é curioso, quase estranho, estar hoje aqui, em uma vila remota na França trabalhando com refugiados. Não foi em 2017, não foi na Grécia. Foi no tempo certo e no lugar certo. Coisas que a Aline de cinco anos atrás jamais poderia compreender, ou ser.

Seria redundância dizer o quão -absurdamente- difícil foi tudo isso. E quantas vezes achei que não conseguiria. Talvez em casa mudança, achei que não conseguiria. Entre medo, solidão, cansaço. Entre barreiras instransponíveis. Entre a hostilidade de ser estrangeiro. Entre saudade, distância, escolha. É claro que há uma romantização inevitável sobre a “vida no exterior”. Pois as pessoas ligam isso ao turismo, não à imigração. Ou sei lá. Nunca alcançaremos a realidade alheia, afinal. Pergunto-me se as dificuldades afinal não seriam semelhantes se tivesse permanecido no Brasil. Nessa equivalência que a vida costuma ser. Acredito que sim. E talvez seja exatamente nessa dificuldade que o formidável surge. Assim, aos poucos, imperceptível durante grande parte do processo.

Andei pensando bastante no conceito de super-homem de Nietzsche nesses dias.
“o sofrimento não inviabiliza mas potencializa”.

Sempre quis viver grandes aventuras e expandir o meu senso de realidade.
Agradeço, muito, por tudo.

Azul e Vermelho

Sonhei que você me dizia que tinha começado a gostar da cor vermelha. Achei singelo. Essa tentativa de reparação da minha mente. É sempre uma trinca, você sabe, nesse frágil ego humano, essa despreciação do que somos. A gente teve um papo legal sobre isso. Sobre como nos vemos e como somos vistos. E os entrelaços de ambos. Depois do nosso encontro, você descreveu a minha pessoa com palavras estridentes: “Uma panela quente /Águas agitadas /Algo agudo”. Achei curioso. Quando você me perguntou a minha cor favorita, eu disse: “Depende para quê. Vermelho, por exemplo, é uma cor que me identifico”. Prontamente você disse: “É uma cor aguda né.” É.

Você disse que as minhas águas pareciam querer devorar você. E isso te assustava. Era invasivo. Você disse. Esse meu torpor diante de ti e suas águas calmas e azuis. Eu, sou tempestade. Sobre você.

Ainda dói. Tudo isso. Menos que ontem, mais que amanhã. Mas dói. Esse lugar errado que me vi. Esse ser errado. Sou assim? Fui assim? Sou como você me vê? Ou é só desencontro? Dissonância? A gente se deu tão bem. Não calamos a boca por um segundo. A gente tinha tanto sobre o que falar. Nem sei sobre o que. Sobre tudo que não se fala com ninguém. Algumas coisas que você dizia eu queria ter anotado. Como fazer parte do divino mas não ser o divino.  Eu me emociono lembrando disso, agora. Dessa conexão, dessa encontro, dessa troca. Encontrada, perdida. Breve. E do colapso disso. Nessa humanidade espinhosa que somos.

Após o nosso encontro, eu escrevi um texto. Você não quis ler. Eu quis te ligar. Você não quis atender. Eu quis te ver de novo. Você me mandou embora. Dizendo todas essa palavras pontiagudas. Não meu bem, não é que te entendi errado. É que eu te entendo bem.

Desculpa colocar tudo isso em palavras. É que aprendi a conversar comigo assim. Explicando tudo aquilo que não entendo. Mas queria, queria entender.
Queria ser menos intensa? Sou intensa? É clichê me dizer assim? “A culpa é da intensidade”. Rimos. Ainda rimos? Queria ser mais parecida com você? E menos comigo? Às vezes. 

A gente nem conseguiu ver o por do sol juntos. Aquele céu vermelho invadindo, escurecendo, o dia azul.
Estava chovendo

Domingo de Manhã

No rádio toca uma canção:
I can see what you see and I like it / I am a fish in a blue sea and I like it“.
No relógio, dígitos iguais se juntam a todo momento. Eu faço algum comentário empolgado a respeito de quão mágico isso é. Você dá aquele sorriso de canto de boca e diz com o seu humor ácido: “Ou é você que olha muito para o relógio, Aline!”. A gente ri.

O céu é azul sem uma nuvem. É a sua cor favorita. Eu te digo que o céu assim me lembra você. “É muito vibes né” Você, todo doce, responde.

Não há quase ninguém pelas ruas de uma manhã de domingo em uma cidade do interior de São Paulo. Mas a pequena quintanda de bairro está lotada. A gente estaciona lá para pegar dois cocos gelados. É a minha bebida favorita do mundo. Você diz que é a do seu irmão também. “Já adoro o seu irmão. Ele não gosta de pessoas e gosta de água de coco“. A gente ri.

A leveza da simplicidade desse cenário se contrasta com o que nos fez estar ali: uma discussão, algumas lágrimas, longos silencios. Era para você estar dentro do ônibus voltando para a sua cidade. Mas eu te pedi para ficar para resolvermos aquela situação. E que bom que você ficou.

A gente para o carro na estrada de um hotel fazenda no final da cidade. Sentamos na grama embaixo de eucaliptos. Já está tudo bem. Antes de qualquer coisa ser dita ou explicada. Você já me entendeu. Eu já te entendi. A “cumplicidade” que você tanto gosta, voltou. E isso me faz pensar como que a comunicação, ou a compreensão, vai muito além de palavras.
Mesmo assim, conversamos por horas ali. Entre um abraço apertado e outro que eu te dou enquanto passo os dedos em seus cabelos.

As pessoas passam diante a nós caminhando, correndo, levando o cachorro para passear. Você chama um labrador gordo de “Bingo caramelo” só porque ele é grande e manca. A gente ri.

Na próxima cena, estamos andando em ruas quentes e vazias de mãos dadas a procura de um açaizeiro aberto. Você me conta que o seu irmão gosta de cookie e eu falo pra gente ir num café comprar um cookie para ele. Porque ele é legal. Depois de três ou quatro açaizeiros fechados, a gente encontra um aberto. O atendente, que talvez seja o proprietário, oferece-nos amostra de todos os incontáveis tipos de açaí, explicando, com brilhos dos olhos, sobre as diferenciações. A gente acha aquilo lindo. E agradece pelos outros lugares estarem fechados.

O céu azul de um domingo de manhã leva todas as nuvens embora. Como a meditação tibetana que você me conta. Por algumas horas, o peso de tudo se dissipa na brevitude que é o nosso refúgio e fuga.

Você fala sobre mim como se me conhecesse de cor. A gente não se lembra bem como ou quando começamos a nos falar. Ao mesmo tempo, as tonalidades de verde para você são diferentes das minha. Como o verde dos seus olhos. Preciso te aprender. Eu, que tenho dedos longos, estico a mão forte para te tocar. Tentando ultrapassar todas essas camadas grossa que você ergue em torno de si, por trás desse olhar duro que você pousa sobre as coisas, sobre mim. E acho bonito, te digo, esse contraste errante de toda a sua delicadeza se colidindo com a carga pesada dos seus olhos.

Chove forte do lado de fora do carro estacionado em uma estrada. Dentro, a gente bebe cerveja, escuta música e conversa sobre tudo. Vez ou outra, alguma telepatia entre nós. Noutras eu digo que você, assim tão taciturno, é muito difícil de se lido.”- Mas você não é toda médium!?”. A gente ri. E ficamos assim, nesse espaço místico entre eu e você onde o que acontece é a única coisa que poderia acontecer. Até a noite virar um domingo de manhã.

Little Lune

Sempre acreditei, ou mais do que isso, sempre visualizei, um mundo melhor para a gente. Um mundo que já existe. Você toda encantada na ponte de Porto, Portugal, tirando fotos das gaivotas no por do sol. Você me visitando em Curitiba e me dizendo que a melhor parte da da viagem era tomar chocolate quente debaixo da coberta antes de dormir. Você se mudando para São Paulo para trabalhar como jornalista pela primeira vez. Histórias infindáveis sobre um hotel que não era hotel, coxinhas veganas na rua Augusta, uma balanço em um barranco na Vila Mariana. Você agora, mudando para Santos para viver o sonho de morar na praia.

A gente demora um pouco para aprender, ou aceitar, que dar certo é dar errado também. Uma construção de repertório onde aprendemos a diferenciar nuances através da oscilação de contrastes. Vai dar errado só para depois do depois, dar certo outra vez. Quando a gente já tinha parado do acreditar. Quando a gente aprende a acreditar mais uma vez.

Da nossa família, quero enxugar as dores com livros, músicas e sutileza. Desde estudos de abordagem sistêmica, Lacan, Jung e muita espiritualidade, até a sua mãe dançando embriaga na sala ao som de um DVD de Djavan. A Giulia sentada no sofá falando sem parar. Partidas de xadrez no natal. Sua vó contando para todo mundo que eu queria levar ela para tomar açaí à meia-noite. O resto, a parte afiada que, vez ou outra, faz sangrar; pouco a pouco, com uma maturidade que só o tempo consegue trazer, a gente entende que é só a vida fluindo, como pode. E ninguém tem culpa de nada.

No meio de dores grandes, quero encontrar um lugar morno na memória. Uma memória que ilumina o escuro do amanhã. Um futuro que não conheço porque é “real”, e não condicionado pelas nossas estreitas ideias e duais concepções.

Eu só peço que mais e mais, a gente encontre um punhado de epifanias perdidas no dia a dia. Nas coisas mais pequenas e ordinárias, nos lugares mais banais e despercebidos. Naqueles momentos em que todo o peso dos anos se dissolve, e tudo se justifica.

Sempre acreditei. Em nós

“Creio que devemos apenas isso uns aos outros; recitar poemas e contar histórias.” – Neil Gaiman

Desencontro

Antes de me mudar para o Canadá, eu estava completando três anos de namoro. Para mim, que difícilmente consigo ficar seis meses com alguém, foi um tempo muito longo. Esse também foi o relacionamento mais saudável que tive até o momento em termos de reciprocidade, afinidade, afeto. Mas eu não estava pronta, madura, para algo assim naquele momento da minha vida. Terminei para ir à Montreal resolver assuntos relacionados a um ex-namorado que não havia superado até então. É fácil imaginar o quão pesado essa situação foi para o meu parceiro. E naturalmente, ele se afastou. Depois de dois anos, voltei para o Brasil e quis, muito, reencontrá-lo. Não foi possível. Ele já não estava mais ali. Para mim.

Desde então, tive alguns namorados. E mais uma vez, em nenhum relacionamento consegui me manter mais do que poucos meses. E um sentimento de culpa e inaptidão sempre caiu sobre mim. Exijo e espero demais dos outros? Por que me sinto tão desconfortável em uma relação? Início o relacionamento à base de idealização e então é uma questão de tempo para perceber que não há uma conexão maior? Ou estou projetando estruturas de abandono da minha infância? Não conseguindo confiar e permanecer em alguém?

Sempre penso na coincidência absurda de duas pessoas se apaixonarem. Qual a probabilidade de você gostar de alguém e essa pessoa, simultaneamente, gostar de você? Profundamente. Ao ponto de querer se entregar, e ficar. É uma possibilidade muito remota.

Sempre me senti um pouco à parte da maioria. Tendo uma espécie de mundo particular onde ninguém vê ou acessa. Talvez haja uma colisão entre esse mundo interno e externo. E é só na solitude que consigo encontrar alguma cumplicidade e compreensão sobre a minha própria realidade. Por outro lado, acredito e aprecio a conexão. Com tudo. E a intimidade. Gosto de me conectar com as pessoas. Naquele ponto onde um consegue se “desmanchar” no outro. Soltando camadas e camadas de máscaras e escudo. Fazendo do outro abrigo.

Hoje vivo uma espécie de resignação em relação a tudo isso. Confio que tudo tem um tempo próprio. E foco em mim, no meu amadurecimento e autoconhecimento. Sabendo que o desencontro redireciona. 

Nenhum encontro é trivial. Na interação entre substâncias distintas que a transformação da própria substância acontece. O outro é a ponte que me leva. Às vezes me sustentando, noutras, fazendo-me ir. Já em outro lugar. E talvez, já sendo outra.

Te levar para casa

Queria te encontrar em um final de tarde cansado e te levar para casa.
Queria que você me escutasse ou mais do que isso; desmanchasse, conectasse em mim.

Queria a sua voz falando tudo aquilo que ninguém diz.
Queria que você me enxergasse. Desse jeito quase sem querer que você sempre faz. Fazendo-me tropeçar em partes e partes de mim espalhadas, espelhadas, em você.

Queria a sua mão me segurando em qualquer lugar escuro onde eu não alcanço.
Queria que você me recolhesse e me segurasse forte até eu clarear.
Queria você.
Desse seu jeito meio ingênuo meio desapegado meio blasé de quem não se apossa ou nem se importa.

Queria que você viesse comigo. Ficasse comigo. Um pouco ou, com sorte, muito.
Quem sabe?

Queria alguém como você. Que nunca nem vi. Mas queria. Tanto. Você.